domingo, 9 de agosto de 2009

A COMPRIDA SACOLA QUE ARRASTAMOS ATRÁS DE NÓS


A COMPRIDA SACOLA QUE ARRASTAMOS ATRÁS DE NÓS

Extrato do texto original de Robert Bly *





Diz uma antiga tradição gnóstica que não inventamos as coisas, apenas as lembramos. Dentre os europeus que conheço que relembram o lado escuro está Carl Jung. Vou retomar algumas de suas idéias e acrescentar uns poucos pensamentos meus.

Falemos primeiro sobre a sombra pessoal. Com um ou dois anos de idade, temos uma “personalidade de 360 graus”. A energia se irradia de todas as partes do nosso corpo e de todas as partes a nossa psique. Uma criança correndo é um globo vivo de energia. Quando crianças, somos uma bola de energia; mas um dia percebemos que nossos pais não apreciam certas partes dessa bola. Eles dizem: “Você não consegue ficar quieto? Não é bonito o que você está fazendo!”.

Atrás de nós temos uma sacola invisível e, para conservar o amor de nossos pais nela colocamos a parte de nós que eles não apreciam.

Quando começamos a ir à escola, nossa sacola já é bastante grande. E aí nossos professores nos dizem: “O bom menino não fica bravo com coisinhas à-toa”, e nós guardamos nossa raiva na sacola. Quando eu e meu irmão tínhamos doze anos, éramos conhecidos como “os bons meninos Bly”. Nossas sacolas já tinham um quilômetro de comprimento!

Depois fazemos o colegial e passamos por outro bom processo de guardar coisas na sacola. Agora quem nos pressiona não são os malvados adultos e, sim, o nosso próprio grupo etário. A paranóia dos jovens em relação aos adultos talvez esteja deslocada. Eu mentia automaticamente, durante todo o colegial, para me tornar mais parecido com os jogadores de basquete. Qualquer parte de mim que fosse mais “lenta” ia para a sacola.

Meus filhos passam agora por esse processo, que eu já tinha observado nas minhas filhas mais velhas. Minha mulher e eu olhávamos consternados quantas coisas elas colocavam na sacola, mas não havia nada que pudéssemos fazer. Minhas filhas pareciam tomar suas decisões com base na moda e nos ideais coletivos de beleza e sofriam tanta pressão das amiguinhas quanto dos rapazes.

Por isso sustento que o jovem de 20 anos conserva uma simples fatia daquele globo de energia. Imagine um homem que ficou com uma fina fatia – o restante do globo está na sacola – e que ele conhece uma mulher; digamos que ambos têm 24 anos de idade. Ela conservou uma fina e elegante fatia. Eles se unem numa cerimônia e essa união de duas fatias chama-se casamento. Mesmo unidos, os dois não formam uma pessoa! É exatamente por isso que o casamento, quando as sacolas são grandes, acarreta solidão durante a lua-de-mel. Claro que todos nós mentimos a esse respeito. “Como foi sua lua-de-mel?” “Fantástica, e a sua”?

Cada cultura enche a sacola com conteúdos diferentes.

Na cultura cristã, a sexualidade geralmente vai para a sacola. E, com ela, muito da espontaneidade. Por outro lado, Marie-Louise von Franz nos alerta para não sentimentalizarmos as culturas primitivas assumindo que elas não tinham nenhuma sacola. Na verdade, essas culturas tinham sacolas diferentes das nossas e, às vezes, até maiores. Talvez colocassem nelas a individualidade ou a inventividade. Aquilo que os antropólogos conhecem como “participação mística” ou “a misteriosa mente comunal” pode parecer muito bonito, mas talvez signifique apenas que todos os membros da tribo conhecem exatamente a mesma coisa e nenhum deles conhece nada, além disso. É possível que as sacolas de todos os seres humanos sejam mais ou menos do mesmo tamanho.



Passamos nossa vida até os 20 anos decidindo quais as partes de nós mesmos que poremos na sacola e passamos o resto da vida tentando retirá-las de lá.

Algumas vezes parece impossível recuperá-las como se a sacola estivesse lacrada. Vamos supor que a sacola está lacrada – o que acontece?... Uma grande novela do século XIX ofereceu uma idéia a respeito. Certa noite, Robert Louis Stevenson acordou e contou para a mulher um trecho do sonho que acabara de Ter. Ela o convenceu a escrevê-lo, ele o fez e o sonho tornou-se o “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.

O lado agradável da personalidade torna-se, na nossa cultura idealista, cada vez mais agradável. O homem ocidental talvez seja, por exemplo, um médico liberal que só pensa em fazer o bem. Em termos morais e éticos, ele é maravilhoso. Mas a substância na sua sacola assume personalidade própria; ela não pode ser ignorada.

A história conta que a substância trancada na sacola aparece, certo dia, em uma outra parte da cidade. Ela está cheia de raiva e, quando finalmente é vista, tem a forma e os movimentos de um gorila.

Quando colocamos uma parte de nós na sacola, essa parte regride. Retrocede ao barbarismo. Imagine um rapaz que lacra a sacola aos 20 e espera uns quinze ou vinte amos para reabri-la. O que ele irá encontrar? É triste, mas toda a sexualidade, selvageria, impulsividade, raiva e liberdade que ele colocou na sacola regrediram; não apenas seu temperamento se tornou primitivo como elas agora são hostis à pessoa que abre a sacola.

O homem ou a mulher que abre a sacola aos 45 anos sente medo.

Eles dão uma olhada e vêem a sombra de um gorila se esgueirando contra a parede: ora, qualquer pessoa que veja uma coisa dessas fica aterrorizada!

Pode-se dizer que, na nossa cultura, a maioria dos homens coloca o seu lado feminino (a mulher interior) na sacola. Quando ele quer, lá pelos 35 ou 40 anos, entrar novamente em contato com o seu lado feminino, a mulher interior talvez lhe seja bastante hostil. Nesse meio tempo, ele está enfrentando a hostilidade das mulheres no mundo exterior.

A regra parece ser: o lado de fora é um espelho do lado de dentro.

É assim que as coisas são neste nosso mundo. E a mulher que queria ser aceita pela sua feminilidade e para isso guardou seu lado masculino (o homem interior) na sacola, talvez descubra, vinte anos mais tarde, que ele lhe é hostil. Talvez ele também seja insensível e brutal em suas críticas. Essa mulher estará em apuros. Viver com um homem hostil dará a ela alguém a quem censurar e aliviará a pressão, mas não resolverá o problema da sacola fechada. Nesse meio tempo, ela está propensa a uma dupla rejeição: a do homem interior e a do homem exterior. Existe muita dor nisso tudo.

Cada parte da nossa personalidade que não amamos tornar-se-á hostil a nós. Ela também pode distanciar-se e iniciar uma revolta contra nós.

Mas a projeção também é uma coisa maravilhosa. Marie-Louise von Franz observou num de seus escritos: “Por que assumimos que a projeção é sempre uma coisa ruim? Às vezes a projeção é útil, é a coisa certa”. Sua observação é sábia, nos faz lembrar que, se não projetarmos, nunca conseguiremos estabelecer uma conexão com o mundo. As mulheres reclamam que o homem pega seu lado feminino ideal e projeta sobre elas. Mas se não fizesse isso, como poderia ele sair da casa da mãe ou do apartamento de solteiro? A questão não é tanto o fato de projetarmos, mas sim por quanto tempo mantemos a projeção sobre o outro. Projeção sem contato pessoal é perigoso.

Milhares, milhões de homens americanos projetaram seu feminino interior sobre Marilyn Monroe. Como deixaram suas projeções sobre ela, o mais provável era que Marilyn Monroe morresse. Ela morreu. Projeção sem contato pessoal pode causar danos à pessoa que a recebe. Nenhum ser humano pode receber tantas projeções – isto é, tanto conteúdo inconsciente – e sobreviver.



Por isso é da maior importância que cada pessoa traga de volta suas próprias projeções. Quando colocamos muita coisa na nossa sacola particular, o resultado é nos sobrar pouca energia. Quanto maior a sacola, menor a energia.

Algumas pessoas têm, por natureza, mais energia que outras; mas todos nós temos mais energia do que nos é possível usar. Para onde ela foi? Se colocamos nossa sexualidade na sacola enquanto somos crianças, é lógico que perdemos bastante energia. Quando coloca o seu lado masculino na sacola, uma mulher perde energia.

Assim podemos imaginar que a nossa sacola pessoal contém energia que agora não está à nossa disposição.

Se um homem diz que não é criativo, quer dizer que ele guardou sua criatividade na sacola.

Já falamos da nossa sacola pessoal, mas parece que cada cidade ou comunidade também possui a sua sacola. Vivi muitos anos nos arredores de uma cidadezinha agrícola. Esperava-se que cada habitante daquela cidade tivesse os mesmos objetos na sacola. É como se a cidade, por uma decisão psíquica coletiva, colocasse certas energias na sacola e tentasse impedir que alguém as tirasse de lá. Nesse assunto, as cidades interferem com nossos processos particulares e é por isso que é mais perigoso viver nas cidades do que junto à natureza..

A comunidade junguiana, como a cidade, tem a sua sacola; ela geralmente recomenda aos junguianos que mantenham a vulgaridade e o amor ao dinheiro na sacola. A comunidade freudiana exige que os freudianos mantenham sua vida religiosa na sacola.



* Extraído do livro “Ao Encontro da Sombra – o potencial oculto do lado escuro da Natureza Humana”. Connie Zweig e Jeremiah Abrams (orgs). Ed. Cultrix, São Paulo.