Istra e Represa deIstra(construída entre 1658-1685)
Peço desculpas aos que não curtem história: a estes peço que pulem este post. Mas aos que gostam, vai aqui mais uma carta de Svetlana Alliluyeva, a filha de Stalin, extraída do seu livro " Vinte Cartas a Um Amigo". Este livro é esgotado aqui no Brasil. Minha edição é de 1967, da Nova Fronteira. Acho um livro essencial, para se compreender um pouco mais da Rússia do período stalinista e do caráter de Stalin. Seu livro não é, de forma alguma, nenhuma apologia comunista, nem escrito com a finalidade de cultuar a personalidade de seu pai, mas a pura e simples confissão de uma pessoa que viveu ao lado de um homem de personalidade difícil, complexa, como a de seu pai, uma pessoa que amou e sofreu e que tenta fazer uma análise da personalidade paterna, isenta de qualquer sentimentalismo.
Esta carta, em especial, é repleta de um amor lírico pela Rússia e de um sofrimento subjacente em decorrência das coisas ali vivenciadas. Achei oportuna sua postagem, uma vez que a autora fala do amor dos georgianos (origem de seus pais) pela Rússia. Oportuna num momento em que vemos os dois países vivendo momentos tensos. Para mim, é uma das cartas mais bonitas deste livro. Svetlana descreve um amor tão incondicional pela Rússia, de todos que a este país são ligados pelo coração (meu caso), que me identifiquei com esta carta.
"Cap. 11
Antes de ontem, meu querido amigo, eu lhe falei sobre o que para mim era o mais difícil de tudo... Pensar nisso e ainda mais escrever sobre isso é, cada vez que o faço, algo terrível e torturante. Quanto mais vivo neste mundo, quanto mais envelheço, tanto mais difícil me é pensar nisso.Para minha felicidade, no entanto, anteontem, meus queridos amigos Zaimóvskie me arrastaram até a Represa de Istra, em cuja aldeia moram conhecidos comuns nossos; no inverno, todos juntos, esquiamos em torno de Jukovka. Eles nem podem suspeitar como eu lhes sou grata!...No caminho de Istra, viramos na direção de Bujárovska. E me envolveu, por todos os lados, a Natureza, imensa como o céu, tranquila, eterna e indiferente a tudo.
Que lugares maravilhosos! Que beleza suave, calma, terna, que a coisa alguma se compara!O mar, decerto, é magnífico. O Sul, luxuriante e fecundo, com suas montanhas, impressiona fortemente. Mas estas isbás cinzentas - tão antigas e sempre as mesmas - estes prados e campinas e, no horizonte, os bosquetes e, sobre eles, um céu não azul, porém acinzentado - que magia existe em tudo isto! E esta campina ao longo da estrada, com as florinhas amarelas e brancas, que a invadiram e que, esfregando-as nas mãos, cheiram a mel...Pois é. Que rosas do Sul podem ser comparadas a este doce aroma? O próprio córrego Istra, com suas tranquilas águas verde-escuras, com suas margens sinuosas, ladeadas de salgueiros - nessas águas praticamente não se pode tomar banho, mas apenas contemplar e contemplar... E por causa de toda essa beleza tranquila, sente-se apertar a garganta, e seria tão doce chorar, como ao reencontrar um amigo, a quem não se via desde muito tempo, que afinal chegou e em cujo peito a gente deita a cabeça e chora de alegria...
A própria Represa de Istra já é, em si, uma obra poderosa e majestosa da Natureza - aquelas águas levemente onduladas, reluzindo ao sol. E, por todo lado, as barracas, os automóveis, os rostos jovens, corpos bronzeados, trajes de banho de cores vivas - por toda parte, mocidade; este de bicicleta, aquele andando com uma mochila nas costas, aqueloutro de automóvel, levando uma barquinha na capota. Como as pessoas gostariam de viver bem, às claras, com simplicidade; como todos, na Terra, desejam uma mesma coisa: vida boa, saudável...Na aldeia de Aliôkhonovo fomos até a última casa, atrás da qual há um campo de repolhos. As casas, na aldeia, são limpinhas, bonitas. A plantação extraordinariamente arrumada, tudo bem melhor, mais consistente e mais bonito do que em nosso distrito de Kranogorsk, nos arrdores de Moscou...Acontece que, já jpor alguns anos, é presidente do kolkhoz(*) de Aliôkhonovo o agrônomo Schimdt, enviado de Moscou para cá, na época em que se fazia a mobilização dos kolkhozes. Veio então para esta aldeia muita gente que não valia grande coisa, mas também muita gente boa. Este Schmidt (aqui o têm como judeu, mas ele deve descender de alemães russificados - não fazemos distinção) levantou a produção do klkhoz e eis aí, por toda parte, os jardins, trigo, legumes e as pessoas não vivem mal, pois em realidade, precisam de poico para isso - vivacidade, espírito de organização, instrução e iniciativa...
Na tarde em que ali chegamos, custou a escurecer. A aldeia se espalha pelo campo e a represa não fica longe. Sobre ela - toda plana e certa - aquele imenso céu aberto. E dessa amplidão, por muito tempo, veio derramando-se a luz ora cor-de-rosa, do por-de-sol, ora arroxeada, ora azul do lusco-fusco. E tudo era uma tranquilidade, com o cheiro das ervas a se exalar por todos os lados, denso e doce cheiro de especiarias...Logo depois surge a lua, como uma bola de prata por trás do bosque e cada vez mais forte o odor, a grama úmida sob nossos pés e o ar cada vez mais denso e arroxeado As estrelas começaram a se acender, uma após outra, sobre nossas cabeças, cercando-nos de todos os lados, de tal modo que não se podia pensar em mais nada, senão nelas. Instalei-me para dormir numa cama desmontável, no quintal, ao ar livre e durante todo o tempo as estrelas piscavam para mim; veio-me vontade de chorar de alegria por estar viva e respirar a fragância doce das ervas e poder ver as estrelas.De dia passeavamos e nos banhavamos na represa, semelhante ao mar; contemplavamos, do alto, a escarpa. Atrás, o campo de trigo desabrochava em ouro e, por cima dessa imensidão de água, fofas nuvens, redondas e brancas, em torvelinho.Depois, não se sabe de onde, avançou uma nuvenzinha negra, que foi crescendo e se tornando mais negra aos nossos olhos.
Todo o céu de repente se fechou e só o campo amarelado continuava brilhando. E ouvimos fortes trovoadas e caiu uma chuva forte, forte mesmo, que de repente se transormou em granizo. Mas eis que tudo isso foi-se afastandopara longe, por cima da superfície da água e a outra metade do céu começou a se azular de novo... Depois, de trás de um canto da nuvenzinha fugitiva, irromperam longos, longos raios dourados, atravessando as nuvens restantes que se dissiparam rapidamente. De novo surgiu, brilhante, o sol, a secar as gotas de chuva. E tão maravilhoso parecia o mundo, fresco e tudo lavado, que se perdia o fôlego, de deslumbramento... E as lágrimas me oprimiram durante todo aquele dia..E tudo se acabou, como se não houvera aquela nuvem negra, nem aquela chuva. Uma hora depois, voltou o calor, ficou tudo seco ao redor e de novo se bronzeiam os turistas na areia e os barquinhos deslizam, por todos os lados, sobre as águas. Regressamos, à noite, para casa, todos repousados elépidos, após essas 24 horas. Olhava todo o tempo em volta de mim, com tristeza e alegria e fiquei a pensar: de onde me vinha esse amor pela Rússia?
No entanto, somos como uns bárbaros que não existem mais em lugar algum. Na Geórgia, no Uzbequistão, na Ucrania, cada pedrinha antiga, coberta de pátina e cada muro antigo se conservam como relíquias, como tesouros, como preciosidades. Nós, todavia, "somos preguiçosos e pouco curiosos". Na colina, perto de Aliôkhnovo, situa-se uma igreja, com um campanário do lado, milagrosamente salvos durante os bombardeios da última guerra - tendo como guarda as velhas tílias em redor e a igrejinha (um cubo com cúpula no meio) está caindo aos pedaços, e no teto cresceu o sabugo; agora existe lá um depósito de feno e batata... Em lugar algum, em nenhum país de desperdiça, por simples negligência, sua própria riqueza, seus maravilhosos tesouros antigos. Em lugar algum a revolução destruiu tanto do que é útil a sua própria gente, como na Rússia. E hoje, ainda quando vivemos a afirmar e evocar as tradições nacionais russas, isso são apenas palavras e palavras...Mamãe, apesar de sua miscigenação, era naturalmente uma russa autêntica pelo seu caráter, formação e natureza. Papai amou profundamente e, por toda a vida, a Rússia. Não conheço um só georgiano que tenha amado tanto tudo o que era russo e tanto se tenha esquecido de suas próprias características nacionais. Ainda na Sibéria, começou a amar a Rússia de verdade; seu povo, sua língua e sua natureza. Ele se recordava do tempo em que esteve exilado, como se esse tempo tivesse sido somente de caçadas, pescarias e passeios pela taiga. Este amor ele o conservou sempre. Bem, e agora, que falar sobre mim mesma?
Como compreendo bem todos os que voltaram para a Rússia, depois da emigração para a França, onde se podia viver, bem ou mal...E compreendo também os que não foram ao encontro dos parentes que viviam no estrangeiro, quando voltaram dos campos de concentração e das prisões - não, não queriam de modo algum deixar a Rússia!Que dizer mais! Por mais cruel que seja nosso país, por mais dificil que seja nossa terra, por mais que nosso destino seja sucumbir, machucar-se até sangrar, sofrer dores e ofensas imerecidas e injustificadas, nenhum de nós, ligados à Rússia pelo coração, a trairia, nem a deixaria, nem fugiria dela em busca de conforto, um conforto sem alma. como a luz de seu céu pálido, terno e triste, ilumina, por cima de tudo, sua beleza sábia e tranqüila, que resiste a tudo e que tudo suporta e que se conserva através dos séculos.
E eu própria, depois das perdas mais cruéis, depois de tantas amargas decepções e danos, depois destes trinta e sete anos de vida sem sentido, estúpida, de duas caras, inútil e - ai de mim! sem perspectivas, veja em ti, minha querida, espiritual, magnífica, incoerente, sábia e cruel Rússia, a luz que me ilumina e me consola e nada e ninguém poderá te denegrir a meus olhos... E não fora o clarão da luz da tua verdade e do teu bem, eu já teria há muito tempo passado fortemente um corda em torno do pescoço, para não cair dela... E tu coninuas a me iluminar e aquecer e ainda me prometes alguma coisa nesta vida, na minha maravilhosa, querida terra verde e azul...(**)
(*)fazenda coletiva(**)quando escrevi estas linhas, há quatro anos, realmente não imaginava que um dia deixaria a Rússia. Então, todos viviam na esperança de que seriam possíveis transformações radicais no sentido de uma verdadeira democracia. (N da A.)