domingo, 2 de agosto de 2009

SINCERIDADE CRUEL


SINCERIDADE CRUEL



por Cyara Regina


Já devo ter dito isso antes, nem lembro, ô coisinha destrutiva é a tal da sinceridade em excesso! E os homens parecem estar ficando craques nisso, pelo menos é o que eu observo com minhas amigas. Tem uma lista sem fim magoada com frases e demonstrações de honestidade dispensáveis de seus companheiros. Parece que a raça masculina resolver compensar por todos os anos em que foi vista como canalha sem cura; agora foram para o outro lado da moeda e fala mais do que deveria.
Quem precisa ouvir "ainda não estou inteiro com você" no primeiro mês de namoro? Queridos, as mulheres de hoje nao têm mais síndrome de Cinderela, sabiam? A gente sabe que estar inteiro não depende de sapato de cristal, e sim de convivência e química. Mais ainda quando se inicia um relacionamento depois de outro de longa duração (é o caso da minha amiga). O pior é que eles estavam num momento de intimidade, aí o rapaz veio com esse espasmo de verdade absoluta e ainda ficou com cara de "como assim?" quando ela pediu que fosse embora. Queria o que depois desse sincericídio?
Outro caso curioso é o de Roberta, uma colega de trabalho que anda indignada com os homens. A melhor história foi quando saiu com um advogado. No primeiro dia, disse ele logo que nao pretendia casar e filhos estavam fora de questão, isso ainda no couvert, nem o vinho eles tinham escolhido. Agiu como se quisesse se proteger de uma ação na justiça, ou seja, o exemplo clássico de um ser humano sem noção. Muito calmamente, ela cortou o jantar e foi embora, e ele deve etar até hoje achando que a honestidade o salvou mais uma vez de problemas futuros.
Eu mesma já fui vítima de sinceridade obscena várias vezes; desde a adolescência atraio os sincericídas e há alguns anos gasto boa parte do início das relaçoes estabelecendo os limites da verdade para mim. Transou com outra (com camisinha, claro), mas que nada significou?
Apague de sua lista de culpa e esconda a mil chaves porque, a partir do momento em que eu souber, terei que reagir e sei que minha reação não costuma ser das melhores. Sou uma mulher pseudo-moderna, ou seja, entendo o pulo da cerca, mas não o aceito. O pior é que essa estratégia não tem adiantado muito, continuo ouvindo relatos dolorosos de traição que os malditos são incapazes de esconder. Fica escrito na testa!
Meu penúltimo namorado bateu o recorde nessa categoria. Um belo dia, disse que queria conversar comigo, que estava incomodado e precisava desabafar. Eu, preocupadíssima, me coloquei à disposição para um longo DR. Sabe qual era a fonte do desconforto? O rapaz estava achando que tinha algo errado com a relação porque ele estava notando outras mulheres!
Quase disse "que bom!", afinal, o que tem de errado em ser homem, em ter atração por bunda e pernas roliças? Quase nao acreditei e ainda tive que convencê-lo de que aquilo era perfeitamente normal, chamava-se testosterona, pode?
Nos Estados Unidos existe uma expressão que acho ótima e bem realista. Quando os americanos dizem uma mentirinha que nao faz mal a ninguém, chamam-na de white lie, mentira branca. Pois então homens, usem-na! Melhor uma brancosa inofensiva que uma negra verdade que magoa, muitas vezes de forma irreversível.

Genealogia da Malandragem







O brasileiro sempre tem um "jeitinho" para tudo. Saiba que relação existe entre a peculiar malandragem do brasileiro e a construção da Ética e da moral na visão de nietzsche

Costuma-se apontar a corrupção como uma das maiores mazelas da sociedade brasileira. Geralmente, quando questionada acerca desse assunto, a opinião pública tem como alvo favorito de críticas a classe política. É curioso, no entanto, que boa parte dessas pessoas que avaliam negativamente seus representantes costuma recorrer, cotidianamente, a pequenos artifícios que burlam o costume ético e, muitas vezes, até a lei. Estamos nos referindo ao nosso jeitinho brasileiro, à malandragem e ao jogo de cintura, "categorias" que, já incorporadas à nossa cultura, convivem lado a lado com os valores ético-morais mais tradicionais. A "ética" do jeitinho e da malandragem coexiste, paralelamente, com a ética oficial. O cidadão que cobra dos políticos o cumprimento dos preceitos da ética tradicional é o mesmo que usa o expediente do jeitinho e da malandragem.



Claro que a desonestidade não é uma exclusividade nacional. Mas é interessante ressaltar a peculiaridade brasileira na admissão das "categorias" jeitinho e malandragem como elementos paradigmáticos à ação "moral". No nosso país, curiosamente, exaltam-se, ao mesmo tempo, dois tipos aparentemente incompatíveis: o honesto e o malandro. Nesse sentido, como bem observou o antropólogo Renato da Silva Queiroz, a cultura brasileira é permeada por uma ambiguidade ética em que termos como "honesto", "corrupto", "esperto", "otário", "malandro" e "mané" se misturam num confuso caldeirão moral. Esse caráter peculiar de nossa sociedade exige-nos alguns questionamentos: o que levou a cultura brasileira a essa ambiguidade moral? O que fez que nossa sociedade cultivasse certa glorificação da malandragem? E mais: será que essa exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para o Brasil? Ela tem contribuído para o engrandecimento de nossa cultura ou para sua degeneração?

Ao contrário dos personagens malandros de nossa história, geralmente matutos desprivilegiados, Zeca, de Caminho das Índias (Globo), é um garoto de classe média que, apoiado por seus pais, usa sua malandragem não por sobrevivência, mas para perturbar os outros e com a certeza de impunidade

No final do século XIX, o filósofo Friedrich Nietzsche se propõe a realizar uma crítica dos valores morais e, com isso, inaugura o seu procedimento genealógico. Rompendo com a tradição metafísico-religiosa que considera os valores como sendo eternos, universais e imutáveis, o pensador alemão passa a pensá-los por um viés histórico. Ou seja, no entender de Nietzsche, os juízos de valor, antes concebidos como absolutos, teriam sido, na verdade, criados numa determinada época e a partir de uma cultura específica. Tomando como ponto de partida essa perspectiva, o pensador alemão enxergou a necessidade de realizar um exame acerca das condições históricas por meio das quais os valores foram engendrados. E coloca as seguintes questões: de que forma esses paradigmas morais teriam sido gerados? Por quais povos e em que época? Em que condições se desenvolveram e se modificaram? Para efetivar essa investigação, Nietzsche põe a seu serviço os recursos da História, da Filologia, e da Fisiologia. Apesar disso, ao recorrer a essas disciplinas, o filósofo não assume o papel de um cientista positivista, que busca fatos históricos, fisiológicos ou antropológicos. Nietzsche está longe de ser um pensador, que se pretende isento e "objetivo". Para ele, a investigação genealógica já é um procedimento que se realiza a partir de uma determinada perspectiva valorativa. Sua análise deve ser entendida como uma hipótese interpretativa que tem como pano de fundo o referencial das ciências, mas não como um método científico que se embasa em fatos.



Essa exaltação do tipo "malandro" tem sido proveitosa para o Brasil? Ela tem contribuído para engrandecer nossa cultura ou para degenerá-la?

A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM

Em 1970, o crítico literário Antônio Candido publicou Dialética da malandragem, uma referência obrigatória para qualquer estudo filosófico que aborde o tema da malandragem brasileira. O trabalho, um ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias - romance publicado em 1854 por manuel Antônio de Almeida (1831-1861) -, toma o personagem principal do livro, Leonardo Pataca Filho, como o primeiro malandro da literatura brasileira. mostrando que Leonardo transita, cotidianamente, entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas, Cândido afirma que esse romance, já no século XiX, retrata - retrospectivamente - a ambiguidade ética da sociedade brasileira, na época de Dom joão Vi. A desarmonia entre as instituições ético-legais e as práticas sociais efetivas não seria novidade: "Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões de hemisférios e esta subversão final de valores. (...) É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva. (...) manifesta (...) o jogo dialético da ordem e da desordem". (A título de curiosidade, é bom lembrar que, em 1946, época em que a difamação de Nietzsche estava em seu apogeu, o mesmo Antônio Cândido publicou o ensaio O Portador, um dos primeiros textos a apontar a necessidade de se recuperar o pensa-mento nietzschiano).

SUSPENSÃO DOS VALORES

O procedimento genealógico, no entanto, não se restringe apenas a essa pesquisa das origens dos valores, pois, com o seu "método", o filósofo propõe, simultaneamente, uma avaliação desses mesmos juízos de valores. Assim, ele nos interroga, também, acerca do "valor desses valores". Em Para a genealogia da moral, livro publicado em 1887, Nietzsche usa seu procedimento, por exemplo, para examinar a dicotomia ocidental entre os valores "bem x mal". Considerando esses referenciais como fruto da criação humana, o filósofo questiona até que ponto eles têm sido benéficos à nossa civilização: "Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor 'bom' e 'mau'? Que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do homem? São indícios de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida? (...) O próprio valor destes valores deverá ser colocado em questão" a partir do critério vida.

Bezerra da Silva, autor da letra da música Malandro é Malandro e Mané é Mané. No Brasil, a malandragem ganhou valor positivo como traço de personalidade. É como se de um lado estivessem os malandros e, de outro, os "manés"

Se, por um lado, Nietzsche considera que os referenciais éticos são sempre relativos a uma cultura específica e, por essa razão, não podem constituir um critério absoluto de avaliação, por outro lado, ele necessitou de um novo critério pelo qual pudesse avaliar os valores. Nietzsche precisava de um valor que estivesse além de toda perspectiva moral e que servisse, ao mesmo tempo, como referência para julgar qualquer moral.

"Jeitinho brasileiro" e "malandragem" na Política

Brasileiro, que é malandro, sempre dá um jeitinho de lucrar. Quem está no poder, rondado pelas oportunidades de usar a influência do cargo para ganhar algo por fora, tem usado e abusado desta "ética frouxa" que nossa cultura da malandragem estimula. A seguir, alguns escândalos políticos brasileiros, do presente e do passado, que bem ilustram esse hábito de tentar levar vantagem.

Farra das passagens aéreas

O escândalo das passagens aéreas explodiu quando um site tornou público que parlamentares estavam usando suas cotas mensais de passagens aéreas cedidas pelo estado para promover viagens de turismo - até ao exterior - a familiares e amigos.

Nada no regimento especificava que era proibido doar as passagens a terceiros, apenas o bom-senso e a Ética. Como brasileiro sempre dá um jeitinho de sair lucrando, os parlamentares, aproveitando a brecha na lei, estavam financiando viagens de familiares e amigos, viajando a passeio, etc.

O deputado Fernando Gabeira, (PV) que admitiu ter usado sua cota de passagens aéreas de forma irregular

O esquema foi além da simples malandragem e virou desvio de verba: assessores passaram a repassar a sobra do mês para agências de viagem, que vendiam bilhetes para pessoas comuns, pagavam com o crédito da Câmara e dividiam com os assessores o dinheiro dado por quem adquiriu a passagem.

O escândalo fez muitos parlamentares devolverem o dinheiro gasto em passagens não usadas a trabalho e o Congresso rever o regimento a respeito das viagens aéreas.

Compra de votos pelo "mensalão"

A maior crise política sofrida pelo governo do presidente Lula ficou conhecida como "mensalão" e está ligada a um suposto esquema de compra de votos de parlamentares. Deputados receberiam uma espécie de mesada para votar a favor de projetos de interesse do Poder executivo. no governo, o jeitinho era o seguinte: pagar para ganhar votos favoráveis e evitar problemas.

A suposta venda de voto, que deu origem à crise foi só o estopim para a descoberta de uma série de outros escândalos de corrupção relacionados ao "mensalão", como o caso Celso Daniel, o escândalo dos Correios, o dos Bingos e do banco Opportunity, que acabou associado ao esquema do "valerioduto".

O deputado João Paulo Cunha (PT), interrogado por acusações de pertencer ao esquema do mensalão

Cartão corporativo

Que tal um cartão em que a fatura no final do mês fica por conta do Governo? O escândalo dos cartões corporativos foi motivado pelo uso indevido de um cartão criado para pagar despesas pequenas e urgentes de funcionários do governo em missões de trabalho, mas foram descobertas compras de ursos de pelúcia, reformas de mesa de sinuca e até pagamentos de diárias no hotel Copacabana Palace. Alguns mais malandros, usavam a estratégia de sacar o dinheiro e pagar em espécie, assim não deixavam vestígios da ilegalidade, a menos que fossem investigados - e foram. As primeiras denúncias levaram à demissão da Ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, do PT, a pessoa que mais realizou gastos com o cartão em 2007.

Impeachment de Collor

A renúncia, em 29 de dezembro de 1992, do então presidente Fernando Collor de mello para evitar seu impeachment faz parte daquele que talvez tenha sido o maior escândalo político brasileiro. Apesar de ter renunciado, o processo teve seguimento e Collor foi condenado à perda do mandato e à inelegibilidade por oito anos. Nunca antes um político da América Latina havia sido deposto do cargo por impeachment.

Foi aberta uma Comissão Parlamentar de inquérito (CPI) que descobriu que o presidente e familiares haviam tido despesas pessoais pagas com o dinheiro recolhido ilegalmente pelo "esquema PC", que envolvia uma rede de "laranjas" e de "contas fantasmas". A reforma da Casa da Dinda (residência de Collor em Brasília) e um carro Fiat Eelba foram tidos como exemplos de bens e serviços pagos com dinheiro do esquema ilícito. Tais descobertas serviram de base para a abertura do processo de impeachment.
"Mordomia" quase oficial

No governo militar de ernesto Geisel (1974-1979), quando a censura e a repressão apenas começavam a arrefecer, o jornalista ricardo Kotscho escreveu uma matéria descrendo as "mordomias" de que desfrutavam tecnocratas e militares no governo. A certeza de impunidade era tanta que tais mordomias, como longas listas de comes e bebes para residências oficiais, compras de flores e de peças de decoração, distribuição de dividendos em empresas estatais deficitárias e salários astronômicos, eram publicadas no Diário Oficial, conta o próprio jornalista, no livro Do golpe ao planalto
No entender de Nietzsche, esse paradigma seria a vida. Vejamos como argumenta o pensador em Crepúsculo dos ídolos: "É preciso estender ao máximo as mãos e fazer uma tentativa de apreender essa espantosa finesse [finura], a de que o valor da vida não pode ser estimado. Não por um vivente, pois ele é parte interessada, até mesmo um objeto da disputa, e não juiz; e não por um morto, por outro motivo". Nesse sentido, a vida seria um critério de avaliação impossível de ser avaliado, pois qualquer avaliação sempre se dá por meio de uma determinada perspectiva inserida na vida.

Ao examinar o desenvolvimento histórico da civilização ocidental, Nietzsche chega à conclusão de que os fundamentos morais que têm norteado o Ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva negadora da vida e do mundo terreno. Isso porque a Ética ocidental - fundada nos pilares do cristianismo e platonismo - teria como referência moral os valores concebidos a partir de um além. Em ambas as perspectivas fundadoras existiria uma predileção a um mundo extraterreno em detrimento do mundo terreno. No caso do cristianismo, a esperança de redenção no reino de deus teria provocado a negação da vida e do mundo terreno.







Para Nietzsche, os fundamentos morais que têm norteado o ocidente foram engendrados a partir de uma perspectiva negadora da vida e do mundo terreno



O platonismo, por sua vez, ao conceber o mundo das ideias como o âmbito da verdade e da eternidade, teria considerado o mundo terreno como aparente e transitório e, por essa razão, inferior. O procedimento genealógico nos propõe uma forma de investigação filosófica que, além de indagar pela procedência histórica dos valores morais, realiza também um julgamento desses valores.

Colocando a vida como o critério avaliador, a "genealogia" pergunta: qual o papel dos paradigmas morais vigentes? Eles servem para conservar e engrandecer a vida? Ou promovem sua decadência? Nesse sentido, se adotarmos o procedimento genealógico como referência metodológica, teremos que pensar o fenômeno da malandragem como resultado de processos histórico-culturais. Indo além, poderíamos questionar até que ponto ele tem sido favorável ao engrandecimento e conservação da vida.

Nas Ciências Sociais há quem entenda o surgimento do jeitinho e da malandragem como consequência da imposição de uma cultura legal e formalista proveniente da monarquia portuguesa e da igreja católica. Não sendo um resultado legítimo da construção popular, as instituições ético-legais abririam espaço à transgressão. Por outro lado, há também quem enxergue a raiz da "malemolência" brasileira no nosso caráter cultural mestiço.

HERANÇA DE TRADIÇÕES

Por sermos um amálgama de diversas tradições, não teríamos conseguido fixar uma ética coesa. Além dessas teses, diversas outras são apontadas como causa da malandragem tupiniquim: a colonização voltada à exploração, a imposição do formalismo legal como herança do direito latino e, até mesmo, a miscigenação biológica. Apesar dessa heterogeneidade de hipóteses, um elemento comum permeia boa parte dos estudos: a noção de que o jeitinho, a malandragem e congêneres surgem como uma espécie de "mecanismo de adaptação às situações perversas da sociedade brasileira", como ressaltou a antropóloga Lívia Barbosa, em seu livro O jeitinho brasileiro.

Seguindo essa pista fornecida pelas Ciências Sociais, podemos arriscar uma hipótese genealógica para essas "atitudes desviantes": produto de uma combinação entre a árdua condição social e o histórico desamparo do poder público, o jeitinho e a malandragem constituiriam um instrumento de sobrevivência. Assim, essas transgressões seriam uma espécie de infração aceitável socialmente que, na maioria das vezes, justificar-se-ia, ou por uma facilidade em relação aos trâmites burocráticos das instituições oficiais, ou por uma necessidade resultante da dura realidade socioeconômica brasileira. Em ambos os casos, essas violações ético-legais seriam uma espécie de "drible" nas adversidades da vida num país, historicamente, repleto de desigualdades. Tomando esse raciocínio como premissa, podemos dizer que, no Brasil, burlar as regras morais e legais foi algo que se impôs como forma de adaptação ao "ambiente hostil". O brasileiro precisou ser malandro para sobreviver numa sociedade cruel e de enorme abandono do poder público. A origem e fundamento mais remoto da malandragem foi a conservação da vida: a vida se impôs perante as leis e os costumes éticos formalizados, fazendo as circunstâncias efetivas se sobreporem à moral vigente.

O brasileiro precisou ser malandro para sobreviver numa sociedade cruel e de enorme abandono do poder público
Fazer uma fotocópia "clandestina" de um livro - do ponto de vista da Ética formalizada - seria algo reprovável e até mesmo ilegal, porém esta prática é uma das mais comuns em muitas universidades brasileiras. Apesar de se tratar de algo desviante de uma Ética tradicionalmente instituída, essa atitude não é difícil de ser justificada. No Brasil, onde o investimento em Educação é ainda escasso, e acesso aos livros de qualidade é muito limitado, os estudantes - em sua grande maioria com restrições econômicas - são obrigados a recorrer a meios extraoficiais. Além desse exemplo, poderíamos citar diversas outras situações em que as condições efetivas da vida no Brasil se impõem ao "formalismo" ético.

A mãe que fura a fila do atendimento médico de um sistema de saúde saturado para salvar o filho; o morador de uma comunidade carente que faz uma "gambiarra" (ligação clandestina com a rede elétrica) por não ter acesso econômico aos meios legais de distribuição de energia elétrica; o motorista que avança o sinal vermelho à noite para não ser assaltado; ou mesmo um saque de alimentos a um caminhão tombado na estrada.

Mas não se trata de justificar,aqui, uma transgressão generalizada. Como foi dito anteriormente, essa posição assume a "conservação da vida" como fundamento originário desse tipo de burla, mas - é necessário ressaltar - isso não significa dizer que, ainda hoje, a "vida" continue sendo o único referencial criador para toda atitude de infração à legalidade e ao costume ético tradicional.




APOLOGIA À MALANDRAGEM

Com o desenrolar histórico, a própria transgressão teria se transformado em uma espécie de modelo "ético". A antropóloga Lívia Barbosa vai nessa mesma direção: "de drama social do cotidiano [o jeitinho brasileiro] passou a elemento da identidade social. (...) de simples mecanismo adaptativo, reflexo de nossas condições de subdesenvolvimento, o jeitinho se transformou em elemento paradigmático de nossa identidade (...)".
Se até o momento defendemos que a conservação da vida foi o ponto de partida para o surgimento do jeitinho e da malandragem, agora, além desse fundamento, um fator derivado - também impulsionador e potencializador da transgressão - teria surgido no desenrolar histórico-cultural do Brasil: a apologia da malandragem.

O que queremos dizer é que a exaltação do tipo esperto - aquele que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo - ou a glorificação do malandro seria resultado de processos culturais. O tipo esperto teria passado a ser admirado como um vitorioso na luta pela vida.

A partir disso, o malandro passa a ser visto como exemplo a ser seguido, torna-se um referencial para o "dever ser" e se transforma em um "paradigma ético paralelo". Assim, a malandragem - que, de início, foi impulsionada pelas imposições de conservação da vida - se converteu em referência para si mesma. Tornando-se uma espécie de categoria ético-metafísica, ela se transformou em valor moral e passou a ser norteada por si mesma. A malandragem se transfigurou em modelo ético para a própria malandragem.

E ao tornar-se um valor, a malandragem passou a ser compreendida como uma espécie de essência biológica. Ou seja, se transformou em caráter inerente e distintivo de certos indivíduos. De um lado, teríamos a "espécie" dos malandros e, do outro, a dos "manés" - lembremos da clássica tautologia, tantas vezes cantada pelo sambista Bezerra da Silva: "malandro é malandro e mané é mané".

"O medo é o pai da moralidade" - FRIEDRICH NIETZSCHE

Conforme esse raciocínio, a "Filosofia ética da malandragem", por incrível que pareça, teria suas raízes fincadas numa forma de pensar essencialista, já que, na maioria das vezes, o senso comum concebe o "tipo malandro" como sendo esperto de nascença, como por exemplo, Macunaíma, personagem de Mário de Andrade e um dos símbolos da malandragem na literatura brasileira. Há, inclusive, no imaginário cultural do Brasil, a ideia de que o "jogo de cintura", a "malemolência" e a "ginga" são componentes essenciais do caráter do povo brasileiro. O agir malandramente já seria fruto do modo de ser do "esperto brasileiro". Nessa direção, recordemos a "lei de Gerson" - jogador da seleção de 1970 - que proclamava que todo brasileiro - incluindo ele - gostava de sempre levar vantagem em tudo.

Diante disso tudo se pode questionar: qual o valor da "ética da malandragem"? Ela tem servido para conservar e engrandecer a vida? Tudo leva a crer que, ao promovermos essa a apologia da malandragem, perdemos o referencial originário, a saber, a vida.

A malandragem gratuita, a da "lei de Gerson", a malandragem pela malandragem está conduzindo ao caminho contrário da conservação e engrandecimento da vida. Ao se conceber como um povo essencialmente malandro, um povo pacífico e cordial - para usar o termo de Sérgio Buarque de Holanda -, um povo que "resolve" seus problemas na base do jeitinho, o brasileiro estaria se desviando de transformações sociais mais significativas. "Ao funcionar como válvula de escape, ela [a transgressão pelo jeitinho] impede o surgimento de uma pressão social efetiva que leve a mudanças tão necessárias no nosso aparato legal e administrativo" (Lívia Barbosa).

Ou seja, por ser constituída de técnicas individuais de sobrevivência, a malandragem impediria estratégias mais amplas de insurreição popular.


Além disso, apologia da malandragem e a compreensão do povo brasileiro como essencialmente malandro traz à tona o perigo da justificação de uma corrupção generalizada e, por tabela, o efeito colateral de todo um encadeamento de chagas sociais. Concebida como característica natural, a corrupção passa a ser entendida como algo inevitável no Brasil. Isso nos leva a uma licenciosidade ético-legal justificada por uma espécie de determinação biológica. Essa banalização e justificação da corrupção trazem como consequência uma desestruturação social que torna as condições de vida ainda mais precárias. Temos uma espécie de movimento circular, em que os problemas sociais que engendraram a malandragem são realimentados pelo "modelo ético" da própria malandragem. Será que a necessidade de tanta malandragem não levará todos nós a assumirmos o papel de "manés"?

A compreensão do povo brasileiro como essencialmente malandro traz à tona o perigo da justificação de uma corrupção generalizada